04 agosto 2003

Lendas de Botucatu: Minha vida de cachorro

Então um dia um belo vira-lata cinza, meio poodle meio sabe lá o que, com um andar digno de um cão cinematofráfico, todo amarrotado e magrelo, mete as fuças entre o portão da república. Eu e o Baguá, que somos de casa mas não moramos lá, estamos sentados no jardim aquecendo os pés no resto de sol que ilumina aquele fim de julho. Olha que coisa mais engraçada, deve estar morto de fome. Damos um prato de comida, afagamos a cabeça do bicho, o colocamos para fora e entramos. Quando vamos embora mais tarde adivinha quem tá dormindo na soleira da porta? Quem deixou esse bicho entrar? E foi assim, de um dia para o outro, que o então batizado Fluff passou a ser um membro honorário da república.
Quando o Bart voltou das férias foi um pega pra capar. Depois de 3 dias amarrados a uns 50 centímetros de distância um do outro parece que eles começaram a se entender, mas até o Bartolomeu ficava inconformado como o desgraçado ia e vinha a hora que bem entendia.
Até que certo dia... gritos desesperados, lá estava ele, pego pela barriga literalmente, preso a um metro do chão entre duas hastes estreitas do portão de ferro. Fora revelada sua passagem secreta, e por mais esperto que ele fosse, não percebera o quanto engordara desde que o acolhemos e continuava tentando passar pela fresta. Safado!
Depois de alguns meses, Fluff já era um cãozinho gordinho, livre dos bernes e carrapatos que o habitavam, tosado, alias descobrimos que ele era preto com fios brancos (talvez grisalhos) e não cinza. E eu já tinha me acostumado a ir embora a pé com ele me acompanhando. Algumas vezes dormia na garagem do meu prédio, outro portão que não o dominaria, e saia por ai de manhã para suas voltinhas e só aparecia novamente no fim da tarde com cara de quem esteve na farra. Outras vez voltava para a república, mas não sem antes dar uma passadinha em seus points prediletos. Onde íamos sempre perguntavam se o cão era nosso, ele ia comer restos de hambúrguer no trailer perto da cabine telefônica, freqüentava o Ciabata no final da noite onde ganhava um ou outro pedaço de filé e o pet shop vizinho do qual geralmente saia carregando alegremente algum petisco.
Um cão vira-lata é mais um colega do que um bicho de estimação. Você o encontra na rua e oferece uma carona, se ele estiver indo pro mesmo lugar é só abrir a porta e ele pula para dentro, senta-se no banco do passageiro educadamente, ou então você topa com ele na rua, grita seu nome, ele lhe sorri alegremente, atravessa a rua e faz questão da sua companhia.
Alguns meses depois aconteceu o inevitável, a república mudou de endereço. Uma rua agradável e silenciosa, a uns 500 metros do antigo endereço e a uns 100m do meu apartamento, era uma casa longa com uma bela árvore na frente, uma varanda, churrasqueira, estacionamento para 3 ou 4 carros e um alto e extenso muro de concreto cinza no qual se encontrava um portão de aço de 2 metros de altura com barras firmes e fendas estreitas, um obstáculo intransponível para qualquer cão com menos de 1,80 de altura.
Os olhos de Fluff brilharam de amargura através das barras, o focinho encostado no chão, aguardando ansiosamente para tentar escapar pelas pernas do primeiro descuidado que entrasse. Não raramente, quando escapava, ele voltava da esbornea no meio da madrugada e, como não tinha a chave, fazia um alarido até que alguém lhe abrisse a porta.
Certo dia Fluff saiu, não voltou. Ninguém mais o viu por ai. Terá sido pego pela carrocinha? As coleiras que colocávamos sempre sumiam, os portões... Terá escolhido as ruas a um jantar seguro e um afago na cabeça? Será que a liberdade deixa cortes tão forte na alma que escolhemos a solidão no lugar de todas as certezas? É que a maioria de nós nunca foi cão de rua pois uma vez cão de rua, para sempre cão de rua.

01 agosto 2003

Cinesofia: "Extemínio"

Depois de 3 dias meditando a respeito, finalmente consegui tirar algo de bom do filme Extermínio; a trilha sonora, baixada inteirinha do kazaa. Não que o filme seja ruim, pelo contrário. Ele tem pretensões de clássico cult, uma mistura de "A volta dos mortos vivos" com "Blecaute" e primorosamente condecorados com canções que vão do canto gregoriano, passando por influencias celta e culminando no eletrônico.
Então por que uma ficção cientifica batuta como esta me deixou tão entorpecida? O cinema estava terrivelmente frio, a sala cheia e eu sozinha, tão sozinha quanto o personagem que acorda numa Londres deserta antes de ser atacado por "infectados".
"Jesus" você pode exclamar, "por que diabos você gostou deste treco?". Eu acho que nunca me senti tão sozinha durante um filme como me senti nestes porque só ficava pensando que logo vou morrer e você também e todo mundo. Será que Danny Boyle é um brilhante diretor existencialista que consegue unir zumbis e filosofia ou terá sido apenas a música? Despertou algo lá da infância, quando eu era pequena eu me escondia debaixo do banco do carro quando passávamos na frente do cemitério e antes de dormir nunca dizia tchau para os meus pais e sim até amanhã. Quando fico assim eu só consigo pensar em desistir de tudo; olho para minhas coisas e sinto um vazio, olho para minha vida e não quero quase nada dela, mas por incrível que pareça, eu quero apenas a vida. Sem contrato social. Quero alguém com a mão quente que esquente meus dedos frios, quero correr por uma estrada de terra que corte o campo, quero o açoite do vento frio no rosto, quero esquecer que existe amanhã.

"Ser espírito é dominar o escoamento do tempo, ter corpo é ter um presente."
Bergson

20 julho 2003

Pós-aniversário - updated

A cinco meses atrás, após ter ido a uma festa de uma sexagenária, fiz a seguinte pergunta ao ouvir o discurso de sua melhor amiga a 40 anos "Quantas pessoas tem o privilegio de ter um amigo a tanto tempo?". Hoje eu fiz 26, faltam apenas mais 34. Será que vai dar?
Fazemos aniversário, mas muito pouco mudará de um dia para o outro. É o acervo dos dias que contem nossa transformação. O que me toca mesmo nestas datas é que temos uma pequena brecha para dizer para o outro o quanto ele nos é importante na nossa vida. Tem aquele indivíduo que mesmo à distância da um jeitinho, manda um e-mail, um torpedo, uma carta; pode ser um poema de um grande autor, pode ser um parabéns, pode ser um pacote básico de boas vibrações ou uma mensagem nada usual. Ou um telefonema que certas vezes lhe saúda aos gritos, outras timidamente. Tem aquele sorriso que te pega desprevenido na soleira da porta de casa, ou aquele abraço forte e caloroso que pega desprevenido e quase espreme as lágrimas pra fora dos olhos. E tem também o que chega logo estendendo o pacotão para depois perguntar do rango, e o do pacotinho tímido que contem algo preciosamente escolhido. E o afobado que começa a dar parabéns três dias antes, e o desavisado que lhe comprimento com cara de espanto. E o que está todo dia ao seu lado e faz questão de estar mais um, e o que esta longe mas faz de tudo para estar perto.
Enfim, desisti de sonhar com os eternos velhos amigos, aqueles que carrego em minha história. Quem disse que eu preciso fazer 60 anos para saber quanto valem os meus amigos? Aos 26 eu percebi, é preciso ama-los desde já, quero aqueles que compartilham uma história comigo.
Eu agradeço a aqueles que tem feito de mim nos últimos dias, meses ou anos, uma pessoa tão rica, que a vida é feita de maus e bons momentos mas, felizmente ou infelizmente, nada que o tempo não possa resolver...

15 julho 2003

Totem: As Vacas


Por que não as vacas? Por que elas viraram sinônimo de ofensa? Nenhuma vaca que conheci me fizera mal, exceto uma vez de tanto comer bifes...
A vaca é um bicho de paciência monumental, fica lá, paradona no pasto, comendo, espantando moscas, esperando, esperando, esperando... Alguém consegue imaginar como eram as vacas antes dos homens? Da para imagina-las correndo em bandos, procurando comida, fugindo de predadores? Não, tantos milhares de anos domesticadas tiraram das vacas qualquer traço de animal selvagem, elas apenas esperam sem saber o que. Elas vivem no ritmo alheio, de destino definido por alguns poucos homens, engordam, protegidas de estranhos por cercas de arame farpado. Quando na fila do bate, elas tremem, suspeitam de algo, mas sua índole domestica é mais forte, ela continua caminhando, tensa, nada que um bom amaciente Knorr não venha a resolver no futuro.
Talvez tanto se fale das vacas não pelo sexo rápido, pela copula sem prazer. Está no olhar delas, no ritmo delas... Talvez porque mais pessoas sejam vacas do que se imaginam. É a tal vida de gado que canta o Zé...
Lembro quando tirei essa foto ai em cima; estava sozinha no setor de eqüinos do Lajeado e me aproximei do redondel onde 30 animais com cerca de 400 quilos dividiam um espaço de não mais que 10 metros quadrados. Ela se aproximou de mim, passou o focinho na minha mão vazia e afastou-se decepcionada, sem que em momento algum seu olhar ultrapassasse a cerca do redondel.

13 julho 2003

7 dias

Inspirada pelo meu amigo Thiago e por uma velha idéia do wish list referente ao Amaral, e ainda pelo desespero de que só faltam 7 dias e eu ainda não consegui realizar nenhuma das minhas metas para os 25 e os 26 já estão chegando... Sete coisas que eu nunca ganhei até hoje:


7o lugar
Engraçado que eu que gosto de Jazz nunca ganhei cd algum de jazz, apesar de já ter distribuído vários. Isso me preocupa. Um Cd do Miles Davis já seria de bom tamanho para que eu me sinta mais segura.

6o lugar
O DVD do filme "Ondas do destino" que nunca consegui ver. É o meu lado consumista falando, mas é um filme independente, então ta valendo!

5o lugar 
Um jantar, um almoço, sei lá... Não importa a hora ou o prato, mas tem que ser feito pela pessoa. Tirando minha mãe ninguem nunca cozinhou algo especialmente para mim. Isso me deprime, eu mesma já cozinhei para algumas pessoas e sei a dedicação que tal ato requer. Cozinhar para alguém é uma das mais respeitáveis demonstrações de afeto.

4o lugar 
Um livro como "Nas invisíveis asas da poesia" do John Keats. Bom, começa pela sensibilidade de alguém achar um livro destes, depois lembrar que o Keats morreu com 26 anos (putz, agora me senti menos realizada ainda!) e que tal livro combinaria comigo.

3o lugar 
Um convite para um fim de semana em Brotas de alguém que tenha tanta obsessão por aquele lugar quanto eu. Não sei se conheço esta pessoa, mas no meio de tanta gente deve haver alguém com quem compartilhar o passo lento de Brotas.

2o lugar 
Uma viagem para Escócia. O problema é que meio que já ganhei uma vez, foram 300 dólares mas dava para pagar o trem e a hospedagem pois eu já estaria em Londres, acontece que fiz uma besteira e nunca cheguei se quer a caminho das Highlands. Só me sobrou a gaita de fole soprando no vale verde da minha imaginação.

1o lugar
 Um beijo perfeito.
"It will be the kiss by which all others in your life will be judged...and found wanting."

11 julho 2003

Tudo que você sempre quis saber mas nunca teve coragem de perguntar: Portas de banheiro

Engraçado que naqueles botecos de esquina, em lugares que só se vende coxinha requentada, pinga, cerveja, salame e eventualmente azeitonas enquanto meia dúzia de gatos pingados assistem a um jogo de futebol da segunda divisão numa tv cheia de chuvisco, ou na melhor das hipóteses, tentam em vão acertar a bolinha numa mesa de sinuca, se você olhar lá no canto enxergará pintado acima da porta do banheiro feminino 'Damas'. Nada contra, mas que é difícil imaginar uma dama entrando num lugar destes, exceto em caso de extrema emergência, isso é difícil. O único tipo de "dama" que consigo enxergar freqüentando um lugar assim é uma mulher já passada num decadente vestido longo um ou dois números menores que o ideal com uma batom vermelho vivo nos lábios caídos. Algo meio que saído da Ópera do Malandro...
Já os banheiros de "classe" também possuem a sua inspiração nas décadas passadas e ainda mantém aquele velho sinal: banheiro masculino, cartola e bengala; feminino, sombrinha de renda e luvinhas. Adequadíssimo.É o próprio retrato da nossa elegante e galante geração... Provavelmente o dono do banheiro imagina que qualquer mulher, quando entra num local destes, se sinto a própria donzela da era vitoriana com um gentleman de cartola me esperando do lado de fora enquanto dá o famoso jeitinho de fazer xixi sem encostar no acento.
Já nos lugares mais descolados temos aqueles símbolos: uma bolinha com um senhora flecha apontando para cima, os garotos, e um bolinha com uma tímida cruzinha pendurada, as meninas. Como as coisas andam cada vez mais confusa ultimamente já há estabelecimentos com um terceiro banheiro, com uma bolinha, uma flechinha e uma cruzinha abrigando o mesmo espaço.
Já pizzarias rodízios do interior, churrascarias do ABC, lugares como o extinto Grupo Sergio (pra quem tem mais de 25 e mora na zl) sempre apelaram para criatividade, ou para o desespero, e colam na porta algo trágico como uma Margarida e um Pato Donald, uma Mônica e um Cebolinha ou o tipo de coisas que qualquer um dos 10000 freqüentadores diários seja capaz de entender.
E essa história de porta de banheiro poderia virar uma tese de mestrado em ciências humanas. Então, quando você escolher que tipo de lugar deseja ir, na dúvida, pergunte sobre o banheiro.

08 julho 2003

A loucura nossa de cada dia: Hábitos alimentares.

 Feijão coado, pizza só de mussarela, intolerância a alimentos da cor verde, rejeição absoluta a frutas, frutas picadinhas, pão de cachorro-quente com banana, panetone com maionese, resistência a frango, "vegetarianos" que só não comem carne de vaca, x-salada sem alface, feijão com doce de abóbora e a lista continua infinitamente por ai. E o pior de tudo é que as pessoas que conheci e tem estes hábitos alimentares já são bem grandinhas...
Em geral os culpados são os pais que em algum momento da vida destes tristes indivíduos se propuseram, por exemplo, a coar o feijão para seus filhos que sofriam de frescurite. Ou talvez, como é meu caso com o yogurte de maçã, uma associação a algum desconforto alimentar.
Pior que as frescurites são aquelas pessoas que nunca sabem o que pedir num restaurante; "Onde você quer comer?", "não sei, onde VOCÊ quer comer?" e depois ficam perguntando o que você vai pedir ou então aguardam com cara de paisagem para então decidirem que querem o mesmo que você sem ao menos saber direito o que estão pedindo, quando a comida chega "mas eu odeio mariscos!", "Isso aqui está horrível, como alguém pode gostar disso?".
Já almoçar com meu pai e minha irmã, não importa onde você vá, eles sempre sabem o que querem comer, eles dão um jeito, "é impossível que aqui não sirva bife com arroz e batata frita" e em ultimo caso há o famoso espaguete a bolonhesa. Nunca entendi porque alguém sai de casa para comer arroz branco com bife e umas batatas murchas. Talvez seja por isso que sempre que como fora tenho a compulsão de pedir o prato mais estranho do lugar, alem do mais, me encanta a cara de horror da minha irmã ao ver-me enfiar umas perninhas de lula ou uma tenra fatia de coelho goela abaixo. Gosto do desafio, logo serei a mulher que comeu de tudo.

03 julho 2003

Putz, esse post é em homenagem ao ser incognito que entrou aqui semana passada procurando no Cadê? por "Lendas de Botucatu"! Provavelmente este ser não volte pois se deparou com um blog que falava sobre tigres, mas nunca se sabe. E também ao Devasso que merecia um post só para ele, ou talvez um livro só para ele. Figura...



Lendas de Botucatu: Morro do Peru

Botucatu, como toda boa cidade do interior, é uma cidade cheia de lendas. Não lendas como as ditas lendas urbanas, onde um cara com um machado se esconde no banco traseiro do seu carro, as lendas do interior contem um certo charme como o Saci (aguardem), o Lobisomem, o Boto e outras mais regionais...
Essa foto aqui em cima é coisa do Ney Takashi Furukita, mais conhecido como Devasso. Veterano da Zoo, Devasso conhece Botucatu como nenhum forasteiro conhece. O Morro do Peru é visível da estrada, mas nada comparado ao "mirante" descoberto pelo Devasso. Depois de parar o carro numa estrada de areia deserta, subir um morro escorregadio na escuridão com a Kota reclamando que íamos ser assassinados e finalmente desafiar os carrapatos, eu o vi. Iluminado pelo lua, sua sombra se levantando no mais absoluto silêncio, enquanto Devasso fazia sinais com a lanterna, Deus sabe lá para quem. Foi a única vez que ouvi a lenda do Morro do Peru, mas até hoje me sinto perdida naquele momento.
O Devasso, que já havia acampado no morro, prometeu que um dia nos levaria conhece-lo pessoalmente, ainda que o tempo tenha mudado nosso rumo, de outros mirantes a Bauru as Três Pedras a separação. Porem, provavelmente sem o Devasso , não haveria ainda tantas lendas de Botucatu para serem contadas. São os contadores de lendas que passam nossa história para frente, mas não é qualquer um que sabe viver uma lenda.
Ah! A lenda do Morro do Peru?
Se você acampar no morro na noite de páscoa pode ser que dê de cara com um peru dourado que o levará até o ouro perdido pelos Jesuítas naquela região. Nada comparada a lenda do culto dos adoradores de Lúcifer nas Três Pedras. Mas por algum motivo, que talvez vá muito além da geografia, o morro é classificado como Morro Testemunho da Cuesta de Botucatu. Bom, não sei ao certo quanto ao testemunho ou ao Peru dourado, mas eu, com certeza, voltei de lá uma pessoa mais rica.

01 julho 2003

Totens: Os Cães

Sinceramente, alguém sabe o que é um "sorriso canino"?
Eu sempre fui uma pessoa mais cão. Ou você é uma pessoa cão ou uma pessoa gato. Não dá para jogar nos dois times. É uma questão de princípios. Cães não caminham em cima de muros no meio da noite nem não lançam olhares soturnos de um canto escuro. O cão é fiel por convivência. Descansa a sua sombra, se acolhe ao seu lado, não se deixa excluir, se faz presente. Mas alguns cães, não pertencem a ninguém, pertencem a todos, pertencem ao mundo. Hoje você abre a porta da sua casa, ele entra, disponível para te amar, a sua casa sempre será dele. Vocês passeiam sem coleira nem guia, caminham juntos sem destino certo, são capazes de sentar na grama por horas lado a lado, contemplando a passagem, em um silêncio confortável. Você sabe que amanhã é um outro dia e este cão não lamentará por você, mas carregá você por onde for sem mesmo estar consciente disso. Um dia quem sabe, se os caminhos cruzarem... Você sempre carregará na memória aquele sorriso... sorriso canino.

29 junho 2003

Totem:

Este post saiu de uma conversa que tive com o Wilton, "Que morra comigo o mistério que está escrito nos tigres.". Gosto das causas e efeitos Wil mas será tão simples assim? O Wil não é um cara místico, eu também não, embora acho que busquemos experiências extras-qualquer coisa, cada um a sua forma.
Não é de hoje a crença de que cada um de nós está ligado a um animal. Para parte dos índios norte-americanos este totem animal é hereditário, para outras tribos cada indivíduo constrói um laço com um "espírito" animal diferente. Não importa de onde venha, esta representação homem/animal é certamente mais vasta e antiga do que posso imaginar; deuses egípcios, xamanismo, lendas, totens, pets... Talvez de fato carreguemos um animal dentro de nós, resquícios de nosso passado primitivo, nosso lado instintivo ou mesmo talvez nosso alter ego.
A tempos que eu queria escrever sobre algo assim. Os animais que colocarei aqui no site de agora em diante são leituras minha, nada de mistico ou científico. Aguardem os próximos conforme for surgindo oportunidade.

E Wil, o mistério dos tigres é alcançável dentro de cada um de nós, mas seria possível eu faze-lo entender? É por isso Borges diz "Por isto não pronuncio a fórmula, por isso deixo que os dias me esqueçam, deitado na escuridão." ou é por que ele descobre ser muito pequeno? Ou seria os dois?


Eu sempre nutri uma certa simpatia pelos equinos, mas depois da faculdade acho que passei a venera-los. Se algum animal habita em mim, é meu alter ego ou seja lá o que for, deve ser este.



Os cavalos:
Olhando para eles, grandes, rápidos, musculosos até esquecemos que ele não é um predador e sim uma presa. Por isso os equinos são curiosos e desconfiados, exímios conhecedores de caráter. Não que todos sejam ótimos camaradas, mas todos vão querer ter certeza de com quem estão lidando. E é preciso saber que um cavalo nunca esquece.
Quem olha aquele bicho enorme e majestoso no pasto não imagina que o cavalo é um bicho frágil que vive sobre estresse constante. Cada parte do seu corpo é uma extensão do mundo. Ele responde com os olhos, olha com os ouvidos e escuta com toda a sua pele, ele está eternamente pronto para se mandar dali porque é da suas habilidades de observar e correr que depende sua vida.
O instinto dos equinos tambem é forte o suficiente para eles saberem que a vida em bando é essencial para sobrevivência. Estabelecem laços e hierarquias entre eles, e o fazem conosco. Um cavalo pode ocupar uma posição mais baixa entre alguns animais mas ser líder entre outros. Nós temos que decidir se seremos o seu líder ou se deixamos que ele nos lidere, mas liderança consiste em confiança. Em quem vamos confiar? Tornar parte de nossa família? Quando você monta põe sua vida nas mãos do animal e o animal põe a dele nas suas mãos.
 Wil, como eu havia prometido, o mistério dos tigres.

Totem: Os Tigres

O poeta se encontra perdido nas dunas de areia, como Borges que agora anda a espreitar tigres. Das montanhas geladas da Sibéria as quentes Planícies Indianas, o Tigre caça solitário, caminha a passos leves, articulando pele e osso, força e flexibilidade. É impossível não sentir a presença do Tigre expandir-se até seus ombros. Não olhe para trás. Haverá alguma coisa ali? Talvez seja melhor não descobrir.
O Tigre segue, desprezando o que não for caça, os olhos sempre voltados para frente, o corpo curvado, o coração protegido no peito. Eis seu objetivo: sobreviver.
Ele desliza macio, inconsciente de ser um felino, alheio a sua própria sensualidade, preparado para fazer sangrar, para rasgar a carne com os dentes, para segurar a presa pela unha, o Tigre, sozinho, para se satisfazer.
Buscará o outro apenas para calar o instinto, tratará gentilmente os seus para que aprendam a fazer-se respeitar, cuidará enquanto não representarem perigo. Segue que a terra é sua, cada gota de sangue que verter sobre ela será sua recompensa, mas não atacará o corpo do poeta, este desejo não há de se realizar. Não com aquele que ama os tigres, já cumpre sua sentença de ter apenas a alma devorada.

26 junho 2003

...ainda sobre correspondências:

Já que eu falei em correspondência... acho que com um pouco de esforço um e-mail pode ter um certo charme, não vou ser injusta, apesar de nada mais descartável e impessoal. Eu bem que me esforço, mas um e-mail destes sem resposta é ainda mais triste que uma carta sem resposta simplesmente pelo fato de a coisa ser tão fácil... ou será que não é?
Só de raiva (e falta de tempo) vou postar um e-mail pessoal que enviei para uma pessoa e não tive resposta. (Será assim tão fácil responder?)

---E-mail da Giu para alguem---

"Quantas linhas ou quantas paginas tem a história perfeita? De entendimento perfeito? Acho que essa história não teria graça. O que aprendemos* guardamos por toda vida, o que nos ensinam**, nem sempre faz sentido. De qualquer forma ainda aguardo por ela, mas que seja construída por força semelhante a insensatez porem que apenas requeira um pequeno dispêndio de energia por parte do leitor.
Infelizmente hoje ninguém mais tem disposição pra isso não?
Fernando Sabino e Clarice Lispector trocaram cartas por quase 20 anos***. Fica fácil falar assim, não? Dois matutos conversando. Tem momentos que gostaria de entrar no meio da conversa porque acho que mais ninguém ia entender alem deles. Não é verdade, tem gente que entende, mas você não esta entendendo nada não?
Então vou escrever um pedaço do livro pra você:

Carta do Fernando p/ Clarice 1946
'O que você deve ter não é um problema, mas muitos problemas, que podem ser horríveis, mas são muitos, portanto não são você, apenas te prendem (...) Creio muito em você, tanto quanto às vezes creio em mim
mesmo. De repente descreio violentamente: tenho medo de falharmos.'


Será que um deles encontrou?
Bom, ele sabe como somos incrivelmente pequenos, não? E nós, sabemos?
Beijos
Giu

Obs:
*Palavra derivada de "apreender": apropriar-se (Dic. Aurélio)
**Transmitir conhecimento (Dic. Aurélio)
***Publicadas"

24 junho 2003

Correspondência:

Estou emocionada, sempre fico emocionada nestas ocasiões, hoje recebi uma carta. E não era conta para pagar, não era propaganda de pizzaria, nem multa. Era um envelope branco endereçado a mim, com meu nome escrito a caneta, selo, estampa e tudo mais. Não precisei ler o remetente porque reconheci a letra e também provavelmente porque a Novs é a única pessoa que eu conheço que ainda escreve cartas. Entrei em casa com o papel estalando na mão, coloquei-a no escritório, tomei banho, preparei um lanche e só então sentei para ler, rasguei com cuidado o canto do envelope e desdobrei três folhas escritas a mão, li as novidades, não tão novas, satisfeita por segura-las em minhas mãos. Tive que seguir todo um ritual para fazer jus a carta. Não que não nos falemos por e-mail ou telefonemas esporádicos, mas uma carta é uma carta, um artesanato. A carta trás nas linhas o humor do autor, as condições no papel, percorre um longo caminho, pode ser lida, relida, queimada, amassada, guardada de baixo do travesseiro, ser, muitos anos depois, encontrada.
Em quartos escuros, iluminados apenas pela mingua luz de velas, olhos atentos as palavras, talvez letras desenhadas cuidadosamente a bico de pena... durante séculos cartas de negócios, de saudades, de amor, de mágoa, atravessavam o mundo para fazer história, mesmo numa época em que uma carta levaria seis meses para ir da Inglaterra a China, elas carregavam o coração dos homens, que aguardavam ansiosos a chegada a seus destinos e mais ansiosos ainda esperavam por respostas.
Ter amigos distantes não garante cartas. Não me faltam pessoas que amo mundo afora, seja Inglaterra ou Campinas, seja Missouri ou Tatuapé; numa era onde o mundo parece tão pequeno a tecnologia apenas ampliou o espaço entre nós.
Tenho uma dívida a pagar, e que pagarei com o maior prazer, se não pude ir até Concórdia é uma parte de mim que vai.