04 agosto 2003

Lendas de Botucatu: Minha vida de cachorro

Então um dia um belo vira-lata cinza, meio poodle meio sabe lá o que, com um andar digno de um cão cinematofráfico, todo amarrotado e magrelo, mete as fuças entre o portão da república. Eu e o Baguá, que somos de casa mas não moramos lá, estamos sentados no jardim aquecendo os pés no resto de sol que ilumina aquele fim de julho. Olha que coisa mais engraçada, deve estar morto de fome. Damos um prato de comida, afagamos a cabeça do bicho, o colocamos para fora e entramos. Quando vamos embora mais tarde adivinha quem tá dormindo na soleira da porta? Quem deixou esse bicho entrar? E foi assim, de um dia para o outro, que o então batizado Fluff passou a ser um membro honorário da república.
Quando o Bart voltou das férias foi um pega pra capar. Depois de 3 dias amarrados a uns 50 centímetros de distância um do outro parece que eles começaram a se entender, mas até o Bartolomeu ficava inconformado como o desgraçado ia e vinha a hora que bem entendia.
Até que certo dia... gritos desesperados, lá estava ele, pego pela barriga literalmente, preso a um metro do chão entre duas hastes estreitas do portão de ferro. Fora revelada sua passagem secreta, e por mais esperto que ele fosse, não percebera o quanto engordara desde que o acolhemos e continuava tentando passar pela fresta. Safado!
Depois de alguns meses, Fluff já era um cãozinho gordinho, livre dos bernes e carrapatos que o habitavam, tosado, alias descobrimos que ele era preto com fios brancos (talvez grisalhos) e não cinza. E eu já tinha me acostumado a ir embora a pé com ele me acompanhando. Algumas vezes dormia na garagem do meu prédio, outro portão que não o dominaria, e saia por ai de manhã para suas voltinhas e só aparecia novamente no fim da tarde com cara de quem esteve na farra. Outras vez voltava para a república, mas não sem antes dar uma passadinha em seus points prediletos. Onde íamos sempre perguntavam se o cão era nosso, ele ia comer restos de hambúrguer no trailer perto da cabine telefônica, freqüentava o Ciabata no final da noite onde ganhava um ou outro pedaço de filé e o pet shop vizinho do qual geralmente saia carregando alegremente algum petisco.
Um cão vira-lata é mais um colega do que um bicho de estimação. Você o encontra na rua e oferece uma carona, se ele estiver indo pro mesmo lugar é só abrir a porta e ele pula para dentro, senta-se no banco do passageiro educadamente, ou então você topa com ele na rua, grita seu nome, ele lhe sorri alegremente, atravessa a rua e faz questão da sua companhia.
Alguns meses depois aconteceu o inevitável, a república mudou de endereço. Uma rua agradável e silenciosa, a uns 500 metros do antigo endereço e a uns 100m do meu apartamento, era uma casa longa com uma bela árvore na frente, uma varanda, churrasqueira, estacionamento para 3 ou 4 carros e um alto e extenso muro de concreto cinza no qual se encontrava um portão de aço de 2 metros de altura com barras firmes e fendas estreitas, um obstáculo intransponível para qualquer cão com menos de 1,80 de altura.
Os olhos de Fluff brilharam de amargura através das barras, o focinho encostado no chão, aguardando ansiosamente para tentar escapar pelas pernas do primeiro descuidado que entrasse. Não raramente, quando escapava, ele voltava da esbornea no meio da madrugada e, como não tinha a chave, fazia um alarido até que alguém lhe abrisse a porta.
Certo dia Fluff saiu, não voltou. Ninguém mais o viu por ai. Terá sido pego pela carrocinha? As coleiras que colocávamos sempre sumiam, os portões... Terá escolhido as ruas a um jantar seguro e um afago na cabeça? Será que a liberdade deixa cortes tão forte na alma que escolhemos a solidão no lugar de todas as certezas? É que a maioria de nós nunca foi cão de rua pois uma vez cão de rua, para sempre cão de rua.

01 agosto 2003

Cinesofia: "Extemínio"

Depois de 3 dias meditando a respeito, finalmente consegui tirar algo de bom do filme Extermínio; a trilha sonora, baixada inteirinha do kazaa. Não que o filme seja ruim, pelo contrário. Ele tem pretensões de clássico cult, uma mistura de "A volta dos mortos vivos" com "Blecaute" e primorosamente condecorados com canções que vão do canto gregoriano, passando por influencias celta e culminando no eletrônico.
Então por que uma ficção cientifica batuta como esta me deixou tão entorpecida? O cinema estava terrivelmente frio, a sala cheia e eu sozinha, tão sozinha quanto o personagem que acorda numa Londres deserta antes de ser atacado por "infectados".
"Jesus" você pode exclamar, "por que diabos você gostou deste treco?". Eu acho que nunca me senti tão sozinha durante um filme como me senti nestes porque só ficava pensando que logo vou morrer e você também e todo mundo. Será que Danny Boyle é um brilhante diretor existencialista que consegue unir zumbis e filosofia ou terá sido apenas a música? Despertou algo lá da infância, quando eu era pequena eu me escondia debaixo do banco do carro quando passávamos na frente do cemitério e antes de dormir nunca dizia tchau para os meus pais e sim até amanhã. Quando fico assim eu só consigo pensar em desistir de tudo; olho para minhas coisas e sinto um vazio, olho para minha vida e não quero quase nada dela, mas por incrível que pareça, eu quero apenas a vida. Sem contrato social. Quero alguém com a mão quente que esquente meus dedos frios, quero correr por uma estrada de terra que corte o campo, quero o açoite do vento frio no rosto, quero esquecer que existe amanhã.

"Ser espírito é dominar o escoamento do tempo, ter corpo é ter um presente."
Bergson