25 fevereiro 2004



História de familia: desde 21 de fevereiro de 1916, Anna Mosca

4 filhos, 9 netos, 6 bisnetos, 36 anos na Itália, 52 no Brasil, 2 grandes guerras, 40 viagens a nossa senhora da aparecida, uma dezena de pequenas guerra, 88 anos de vida, colesterol de bebê, um único parceiro por 50 anos. Ela sobreviveu as grandes epidemias, a travessia de dois meses no oceano com o quarto filho na barriga, sobreviveu aos irmãos e ao marido, mesmo garantido todos os dias da sua vida que seu fim estava chegando. Até que ela enfrentou bem apagar suas 88 velinhas, acho que pela primeira vez me levou a olhar com certo orgulho para ela. Apesar de números tão pomposos sempre fui muito mais indiferente a minha avó do que qualquer outro membro da família. Não me levem por má pessoa, dos nove netos sou a única que está ai todo dia para servi-la, enquanto os outros dedicam a esta difícil senhora visitas esporádicas, recapitulam antigas histórias tantas vezes já contadas, atualizam as fofocas de família e pedem bis por aquela velha canção napolitana.
"Malvada" você diria por eu dizer que estas canções mais se assemelham a lamentos e uivos de um cão vadio, malvada por não se interessar pelas fofocas que são tudo que lhe restam, malvada por rir de suas analises do tipo "no aniversario de São Paulo em todo Brasil é feriado?". Não, vovó não é burra, mas não gosta de pensar e é cabeça dura, muito mais surda que o geral, especialmente quando precisa, apressada e sem contato com os pequenos prazeres da vida, e assim sempre foi. Assim as centenas de histórias da vovó soam muito mais interessantes quando contadas por mamãe. Mas é assim mesmo, não existe amor perfeito que dure a uma dentadura e um prato de espaguete.
Voltando as 88 velinhas, foi a primeira festa de aniversário na ultima década que vi minha vó feliz, sem pressa de ir nem de chegar, sem apressar o jantar ou fazer cara feia para conversas paralelas, talvez não pensando no tempo que se esgota. Minha vó diz se olhar no espelho e não se reconhecer. De quem será aquela cara enrugada? E o corpo cansado? Apesar de suas doideiras que a acompanharam por toda vida, a lucidez necessária para saber quem é nunca abandonou sua mente, se lembra de datas de aniversário como ninguém e faz contas excepcionalmente bem para uma mulher com estudos limitados. Nietzche, Sartre, Heidegger, Kierkgaard, Buber, Camus, nem Speilberg ou Woody Allen, santo ou demônio algum, conseguirão a proeza de ajudar uma mulher de mais estudos, como eu, a encontrar solução alguma diante do mistério do espelho. Mesmo nos bons momentos, quando penso que as rugas são impressões digitas da nossa história, e idade só tem quem viveu, na frente do espelho sempre vai existir alguém num corpo estranho que foge a seu tempo. Ontem fui dormir tentando lembrar se breve eu faria 27 ou 28 anos, é um tanto assustador quando nada dentro de mim me diz ter chego tão longe. Admiro minha vó por ter cultivado números tão expressivos que lhe sussurram "bom, são 88 anos, bons anos".

PS: e o bebê é minha mãe!

08 fevereiro 2004



Cinesofia: A festa de Babette

O filme é uma pequena pérola de 1987 onde a traumatizada Babette gasta toda sua pequena fortuna para preparar um banquete, pra lá de libertador, para suas patroas. A história é simples, mas para entender Babette é preciso ser um pouco mais do que ser um filósofo ou um cinéfilo; é preciso ser um gourmet . A cozinha de Babette é sua arte e os convidados não escapam a ela sem transformação alguma.
Na ultima semana dei minha festa de Babette, dois dias de muito trabalho para um menu um tanto quanto simples; arroz com passas, frango assado na cerveja, salada de berinjelas e purê de mandioquinha. Tudo aprovado por 4 exigentes degustadores. A boa cozinha artesanal já me rendeu mais que elogios, textos de hermenêutica e filosofia, mas é na sua apreciação que se encontra o grande prêmio do cozinheiro. Cozinhar não apenas para alimentar-se, mas para alimentar a alma, a comida traduz a personalidade do cozinheiro, a degustação o expõe, como um escritor que se esforça nas sensações, o cozinheiro esforça-se para cria-las e desapertá-las, é uma linguagem tácita.
Infelizmente ainda não aprendemos quando parar de nos "comunicar", muita comida depois e petit gâteau de nozes com sorvete de creme a vontade, o prazer da reunião à mesa deu lugar a um momento de monstruosa saciedade o qual a cozinha francesa aprendeu sabiamente a administrar, oferecendo pequenas e saborosas porções sem cansar o aparelho digestivo ou acostumar o paladar, deixa-se no degustador a perpétua sensação de "quero mais". A sedução é um dos elementos mais fortes na cozinha, talvez por isso poucas mulheres resistem a um homem de avental, aquele que cozinha sem obrigação suspeita-se um perito na função de dar prazer ao outro.